sexta-feira, 29 de março de 2019

Na história do nosso amor
[Yehuda Amicai]

Na história de nosso amor, um foi sempre
Uma tribo nômade, outro uma nação em seu próprio solo.
Quando trocamos de lugar, tudo tinha acabado.
O tempo passará por nós, como paisagens
Passam por trás de atores parados em suas marcas
Quando se roda um filme.
As palavras
Passarão por nossos lábios, até as lágrimas
Passarão por nossos olhos.
O tempo passará
Por cada um em seu lugar.
E na geografia do resto de nossas vidas,
Quem será uma ilha e quem uma península
Ficará claro pra cada um de nós no resto de nossas vidas
Em noites de amor com outros.

[ Trad. Millôr Fernandes  

quinta-feira, 28 de março de 2019

TRANSITÓRIO 

1

No imo 
da Avenida
Paulista
o sulfato
da solidão.

Uma quimera
nos pega
pelas mãos.

Corremos
loucos
em busca
de uma coroa
de louros.

Pódio
deteriorado
e sem
medalha
de ouro.

Ausência
de eternidade
nos olhos
curtos de cada
passante.

2

Ensaiando
a própria fuga
da cidade,

durando
em fugacidade.

Não é a lua
que sangra.
São os pés
dos retirantes.

( Tito Leite )
FÁRMACOS
A psiquiatria ganha lugar
na feira de liquidação.
Na alegria imediata
do simulacro:
adestrar psicopatas.

Antidepressivos
para curar as feridas
da alma
ou esquecer a amada
[que antes
do beijo toca fogo
nos lábios].

Na cabeça, uma ampulheta,
nas mãos, borboletas fugidias,
em todos os caminhos,
nenhum destino:
apertar o botão abismo.


( Tito Leite )
John Ashbery

Down by the station, early in the morning

It all wears out. I keep telling myself this, but
I can never believe me, though others do. Even things do.
And the things they do. Like the rasp of silk, or a certain
Glottal stop in your voice as you are telling me how you
Didn’t have time to brush your teeth but gargled with Listerine
Instead. Each is a base one might wish to touch once more

Before dying. There’s the moment years ago in the station in Venice,
The dark rainy afternoon in fourth grade, and the shoes then,
Made of a dull crinkled brown leather that no longer exists.
And nothing does, until you name it, remembering, and even then
It may not have existed, or existed only as a result
Of the perceptual dysfunction you’ve been carrying around for years.
The result is magic, then terror, then pity at the emptiness,
Then air gradually bathing and filling the emptiness as it leaks,
Emoting all over something that is probably mere reportage
But nevertheless likes being emoted on. And so each day
Culminates in merriment as well as a deep shock like an electric one,

As the wrecking ball bursts through the wall with the bookshelves
Scattering the works of famous authors as well as those
Of more obscure ones, and books with no author, letting in
Space, and an extraneous babble from the street
Confirming the new value the hollow core has again, the light
From the lighthouse that protects as it pushes us away.

Pela estação, de manhã cedo

Tudo desgasta. Vivo me dizendo isso, mas
Nunca acredito em mim, embora os outros o façam. Até as coisas o fazem.
E as coisas que fazem. Como a raspa da seda, ou certa
Oclusiva glotal em sua voz ao me dizer que você
Não teve tempo de escovar os dentes e fez gargarejo com Listerine
Em vez disso. Cada uma é uma base que se pode desejar tocar outra vez

Antes de morrer. Há o momento, anos atrás, na estação em Venice,
A tarde escura e chuvosa na quarta série, e os sapatos assim
Feitos de um couro marrom embotado rugoso que não existe mais
E nada existe, até que você o nomeie, lembrando, e, ainda assim,
Pode não ter existido, ou existido só como resultado
Da disfunção perceptual que você tem carregado por anos a fio.
O resultado é mágica, depois terror, depois dó do vazio,
O ar gradualmente banhando e preenchendo o vazio enquanto vaza,
Se comovendo sobre algo que é provavelmente mera reportagem
Mas de qualquer modo gosta que se comovam. E, assim, cada dia
Culmina em regozijo, bem como o profundo choque como se elétrico,

Conforme a bola de demolição estoura a parede com as estantes
Espalhando as obras de autores famosos, bem como aquelas
Dos mais obscuros, e livros sem autor, deixando entrar
Espaço, e um balbucio estranho da rua
Confirmando o valor novo que o centro oco tem outra vez, a luz
Do farol que protege enquanto nos distancia.

(tradução de Adriano Scandolara)

segunda-feira, 11 de março de 2019

Francis Ponge

CHUVA

A chuva, no pátio em que a olho cair, desce em andamentos muito diversos. No centro, é uma fina cortina (ou rede) descontínua, uma queda implacável mas relativamente lenta de gotas provavelmente bastante leves, uma precipitação sempiterna sem vigor, uma fração intensa do meteoro puro. A pouca distância das paredes da direita e da esquerda caem com mais ruído gotas mais pesadas, individuadas. Aqui parecem do tamanho de um grão de trigo, lá de uma ervilha, adiante quase de uma bola de gude. Sobre o rebordo, sobre o parapeito da janela a chuva corre horizontalmente ao passo que na face inferior dos mesmos obstáculos ela se suspende em balas convexas. Seguindo toda a superfície de um pequeno teto de zinco abarcado pelo olhar, ela corre em camada muito fina, ondeada por causa de correntes muito variadas devido a imperceptíveis ondulações e bossas da cobertura. Da calha contígua onde escoa com a contenção de um riacho fundo sem grande declive, cai de repente em um filete perfeitamente vertical, grosseiramente entrançado, até o solo, onde se rompe e espirra em agulhetas brilhantes.
Cada uma de suas formas tem um andamento particular; a cada uma corresponde um ruído particular. O todo vive com intensidade, como um mecanismo complicado, tão preciso quanto casual, como uma relojoaria cuja mola é o peso de uma dada massa de vapor em precipitação.
O repique no solo dos filetes verticais, o gluglu das calhas, as minúsculas batidas de gongo se multiplicam e ressoam ao mesmo tempo em um concerto sem monotonia, não sem delicadeza.
Quando a mola se distende, certas engrenagens por algum tempo continuam a funcionar, cada vez mais lentamente, depois toda a maquinaria pára. Então, se o sol reaparece, tudo logo se desfaz, o brilhante aparelho evapora: choveu.

(Trad: Júlio Castañon Guimarães)
Anedota japonesa

Peixes mecânicos nadam,
raros, no aquário em Osaka.

Seu terno de vidro quebrou
no armário de espanto.

Um corvo com bico de aço
volta a furar seu cérebro.

As vísceras de Mishima
pulam debaixo da cama.

Nenhum cão na imensa Tóquio
ganirá por sua solidão.

( Donizete Galvão )
de polir com areia
a água dorme no fundo
da casa. mas tudo dorme
no fundo da casa. se uma
esfera de papéis
avulsos, o grampo do fundo
da esfera desfeito.
o exílio encostado ao lado
da janela, uma ou
duas árvores, alguém conversa
o tempo inteiro e fala alto
sobre desertos sem
qualidade –
uma linha muda, o que
se refaz.
( Manoel Ricardo de Lima )