sábado, 28 de fevereiro de 2015

Realejo

algo tátil
mambembe
letra gitana
cartografia
de desejos
num lance
de sorte

in " Decalques " ( 2008 ) 
Desmemórias 

uma outra vida amigo os velhos discos da loja são  miniaturas engarrafadas limiares de um tempo  que corre paralelo memória de mochilas e perfume pathchouly não há notícias  só a casa azul gosto de infância inventada perto do atrito do trem estação final mogi 

Desmemórias 
recolhia as roupas como se habitasse um museu de mímicos e a memória fosse  um ato mecânico seqüência de slides apagando- se distraidamente
Desmemórias 
jardim improvável  mínimo istmo beirando o concreto retrato dos silos onde deitei a memória 

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

2012 
Um quebra-cabeça, os números das casas formam uma sequência vazia até beirar a estação que corre nas veias. Naquela placa, embaralho seu nome até o esquecimento. É preciso reter a água, o fluxo insensato que teima em fluir, até que tudo vire um borrão disforme, um som agudo. Essa rua não é minha. Tampouco aquele espelho quebrado numa tarde de sexta.
EPITÁFIO N.º 1
Sangras em cantos
Te arrancaram a gravata " papillon "
A flor do peito 
Como a um crupiê vendido
E diante do mundo
Leram a tua desonra
Porque não descerraste as maxilas do coração
( Oswald de Andrade )
da sibila, acaso
jogo de conchas
de mareamar

areia úmida
de instantes :

tecido geométrico
da calçada em frente
ao aquário municipal

in " Decalques " ( 2008 ) 

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

nada é mais legal 
que o papel de pão 
tem o cheiro da infância 
das manhãs na vila maria 
quando o manuel penteava 
o bigode com a escovinha 
de madeira e osso e o 
joão peralta pedia fiado 
e pesava uma porção de tremoço

( rabuja rubirosa ) 




no radinho batia o coração de baquelite
( rabuja rubirosa ) 

As coisas da vida


Não te preocupes comigo porque eu sabia que as coisas não podiam durar para sempre. Não foste feita para viver em duas assoalhadas com um escritor que não escreve, para tomar banho de água gelada porque a companhia do gás não fia, para aturar as má-criações do senhorio porque me atrasei na renda. Não te preocupes comigo: compreendo que te vás embora, não armo escândalos, não te peço que fiques. Claro que me custa um bocadinho, ao princípio vou sentir a tua falta, nos primeiros tempos, em chegando as sete horas, ao ouvir os passos no patamar hei-de correr até à porta.
                  É a Tereza
                E afinal não é a Tereza, é o vizinho do lado esquerdo com um saco do supermercado em cada mão, o vizinho a escapar ao meu abraço julgando que eu enlouqueci e eu recuar aflitíssimo
                 Desculpe senhor Vasconcelos tomei-o por outra pessoa
               o vizinho a aconselhar-me com maus modos que deixe de beber e aferrolhar-se em casa com medo que eu apareça para o beijar tratando-o por amor. Mas não te preocupes comigo: daqui a seis meses estou fino, daqui a seis meses já comecei o romance e consegui um empréstimo do editor, daqui a seis meses garanto-te, tenho a certeza que me esqueço de ti. No início estas coisas parecem sempre horríveis e depois à medida que a gente se habitua vamos tendo menos vontade de chorar, vamos recomeçando a interessar-nos por atentados à bomba e divórcios de princesas que são dois tipos de catástrofes que mais nos apaixonam no jornal, deixamos de aborrecer os amigos com telefonemas a desoras e um belo dia
            (é a vida)
            damos por nós a assobiar ao espelho durante a barba da manhã, se alguém nos pergunta ao café
             O que é feito de Tereza?
             temos de fazer um esforço para nos lembramos de qual Tereza
             Qual Tereza?
             e outros espantados
              A tua mulher que Tereza querias que fosse?
             e nós num tonzinho desprendido, nós sinceros
              Ah a Tereza sei lá não a vejo há séculos
             e verificamos sem surpresa que dizer o teu nome já não dói, que não nos recordamos bem da tua cara, que deixaste definitivamente de existir. Portanto não te preocupes comigo: isto passa. Passa a vontade de morrer, passa o desejo de escrever Tereza no pó dos móveis
            ( porque não vou ter ninguém para os limpar)
            e nos vidros embaciados da janela, passa a estupidez de passar os dias estendido no sofá, a olhar o tecto e lembrar-me daquele  passeio à Foz do Arelho, daquele vestido azul que não tornarei a ver, daquele encavalitamento dos incisivos de que eu gostava tanto, do domingo em que queimaste o jantar, das tuas fúrias por eu apertar a pasta de dentes pelo meio e deixar a torneira do lavatório a pingar toda a noite
           Pensas que és rico?
           ou de quando lia o jornal por cima de teu ombro e tu incomodadíssima
           – Não consigo ler o jornal com uma pessoa a espreitar por cima do ombro desculpa
           a atirares com as páginas e a fechares-te no quarto num derradeiro berro
          – Que chatice
  tu que afastavas a perna se eu aproximava a minha, ficavas hirta se eu tentava beijar-te, cessaste de me dar a mão no cinema, se eu te perguntava
      Amas-me?
    ficavas calada ou resmungavas num esforço de alpinista no Himalaia, como se as palavras pesassem toneladas e o oxigênio faltasse
   Se eu não te amasse achas que estava aqui?
   Tinhas relações sem uma palavra, de dedos mortos nas minhas costas como se desejasses
   (imagina o que eu fui pensar, que parvoíce)
   que terminasse depressa, como se desejasses ver-te livre de mim, que se eu me interessava
    Foi bom?
  me respondias
  – Estou cansada dói-me a cabeça não sei
  e te lavavas muito depressa como se eu te tivesse infectado, a chapinhares meia hora no bidê. Eu sabia que isto não podia durar sempre.
Não foste feita para viver em duas assoalhadas com um escritor que não escreve, para tomar banho de água gelada porque a companhia do gás não fia, para aturar as  má-criações do senhorio porque me atrasei na renda. Não te preocupes comigo: compreendo que te vás embora, não armo escândalos, não te peço que fiques, juro que não me zango se esse amigo que estás a falar e que não sei quem é vier ajudar-te a levar as roupas, a levar os teus livros. Não me zango: assim que vocês começarem a descer as escadas ligo à Mariana ou à Paula ou à Raquel, convido-as para sair comigo, recomeço a existência do princípio. Não julguem que vou desfazer-me em lágrimas ou que me suicido. Não vou. Asseguro-te que não vou. Em todo caso, pelo sim, pelo não, deixa ficar os lenços de papel e a embalagem de valium. A gente sempre precisa de alguma coisa que nos faça companhia não é, e detesto limpar o nariz à manga do casaco da mesma forma que a ideia de me atirar pela janela me repugna: ainda podia cair em cima de vocês, lá em baixo no passeio à  espera do taxi, ainda podia cair em cima do teu amigo e partir-lhe um osso ou assim e tu havias de imaginar que eu me sinto agressivo
   que não sinto
   com esse filho da mãe, desculpa, com esse rapaz que deve ser, que tem de ser, que aposto que é uma jóia de pessoa.


(António Lobo Antunes )
LIMÃO E MATE


Dois irmãos, limão e mate:
" - mão " e " - má " , meias palavras 
para bons entendedores
cheios de sede na praia, 
vítimas do dualismo 
universal: o ar e o sal, 
os dois galões ombro a ombro, 
os dois cumes da montanha, 
as duas bandas da bunda, 
os dois sabores do globo, 
o óleo passando no bronze, 
a onda batendo no umbigo, 
os pés debaixo da areia 
e o cabelo relembrado
pelo vento de que o tempo
continua, e morde os corpos.

( Sérgio Alcides )

poeta, bicho de arestas, 
ouriço-caixeiro, espremeu 
sai farpa , salta caco 
do espelho




Tua Nudez ( Juan Ramón Jiménez ) tradução de Manuel Bandeira 
A rosa :
Tua nudez feito graça .
A fonte :
Tua nudez feito água .
A estrela :
Tua nudez feito alma .
Desmemórias 

um frasco de sol  discos de vinil  na prateleira do eldorado papel de parede colado ao contrário dias guardados nas listras  do sofá-cama 

não fui ao parque
eletrônico futurama 
trem-fantasma de
papelão calendário
enferrujado dublagem
de abandonos moldura
de lona na arena
de areia rasgada

in " Decalques " ( 2008