sexta-feira, 2 de junho de 2017

Rabuja Rubirosa e a língua-outrora
Eduardo Sterzi
Se Veronica Stigger, num livro como Delírio de Damasco (e, antes, na exposição Pré-histórias, 2, que deu origem àquele), procede ao que ela mesma chamou de uma «arqueologia da linguagem do presente», numa pesquisa simultânea e dialética da graça e do horror mal enterrados em nossas conversas cotidianas (por exemplo: «Coitados dos índios! / Viviam em paz. / Chegaram os seres humanos e mataram todos»), Diniz Gonçalves Júnior, no projeto de escrita ainda em curso que leva a assinatura, mais do que o título, de Rabuja Rubirosa, propõe algo como uma invenção intempestiva da linguagem do passado, num exercício de filologia poética por meio do qual todo o horror do acontecido – a história como «catástrofe permanente» de que fala Benjamin – se converte, digamos, magicamente, em graça, restando delicadeza e charme, mesmo que seja o charme do fescenino que é também pueril, ali onde a história nos ensinou a esperar somente brutalidade e desencanto.
Magicamente, eu disse: e, de fato, Rabuja Rubirosa, o autor ficto desses quase-aforismos (que, no entanto, parecem recusar, numa mesma ascese, tanto a sabedoria quanto a ironia características da enunciação aforística, postulando algo como uma esfera retórica à parte), pertence à família poética de Zuca Sardan, mestre-de-cerimônias do, a um só tempo, mágico e clownesco Theatro Morfeo (o teatro do sonho no qual, como diz Sardan numa entrevista, «o Palhaço é o Derradeiro Sacerdote»). Talvez Rabuja Rubirosa se aproximasse de Dalton Trevisan, se a escrita deste pudesse se despojar do sarcasmo corrosivo que, no entanto, é sua medula. Já dizia Sérgio Alcides do primeiro livro de Diniz Gonçalves Júnior, Decalques (2008): «Este livro se nutre de uma aura imprevista, insistente, a contrapelo. É estranhamente antiquíssimo e anacrônico: tanto quanto um decalque». A mesma aura, o mesmo anacronismo, o mesmo decalque – que lá, como no livro posterior, Concha acústica (2012), presentificavam um outrora marcadamente autobiográfico (a infância e a adolescência recuperadas pelo adulto que se descobre em meio às «ruínas da modernidade», como também percebeu Sérgio Alcides) – aqui se dirigem a um ontem não-vivido e jamais identificado plenamente com qualquer época determinada, e por isso mesmo ainda vivível, um ontem radicalmente imaginário, radicalmente fictício: isto é, menos um «outrora agora», como formulou Fernando Pessoa, do que um agora-outrora, ainda em aberto, ainda por vir.
Não será esta, quiçá, a forma temporal, nem sempre posta a nu, de toda língua e de toda imaginação em estado de poesia? Não será também o pseudônimo – que reivindica o nome de um célebre playboy do passado, associando-o a uma rabugice inexistente no personagem-autor – um desvendamento do essencial anonimato subjacente a toda escrita poética? Se saudade é, aqui, a palavra-chave, os objetos ao mesmo tempo oníricos e ínfimos aos quais se volta – cine macuco, fubá mimoso, queijadinha da ponte do mar pequeno, cotonifício cantagalo, ceroula furada... – a distinguem de qualquer simples e lamentosa nostalgia.
Rabuja Rubirosa, que nasceu no Twitter (e é mérito de Diniz Gonçalvez Júnior ter depreendido desse meio uma forma literária perfeitamente adequada a ele), vive hoje, mais frequentemente, no Facebook, onde suas máximas sem moral, a não ser a da felicidade como suspensão da crueldade (a começar pela crueldade do tempo que passa), se fazem acompanhar de canções, fotografias, fragmentos de filmes – à espera talvez de uma próxima encarnação em livro, esta tecnologia já tão anacrônica e ainda tão vívida quanto ele.
Saudade do cine macuco (uma antologia)
Rabuja Rubirosa [Diniz Gonçalves Júnior]
a vizinha é um colosso, toda serelepe no saiote curto
a joana toldovelho imitava luz del fuego
não sou baixo, ela que é girafálica
joana ternura fugiu com o pinto calçudo
saudade da ceroula furada
saudade do fubá mimoso
saudade da queijadinha da ponte do mar pequeno
saudade da sapataria branca de neve e os sete anões
saudade do cotonifício cantagalo
saudade do apito da fábrica de tecidos
o bacalhau da vizinha é sempre mais cheiroso
escovando o casco da tartaruga
segurando vela no moinho velho
cantando guantanamera com as maracas furiosas
perdi meu cajado na rua do fado
perdi o bonde na rua do fado
depois do tatuapé vem o carrão
jiboiando
cavucando as cáries do ar
deitado no tombadilho
lá fora faz um sol argentino
o tibúrcio papangu está debruçado no balcão do boteco
a perereca da nádia natureza é uma obra aberta
saudade da geleia de mocotó inbasa
saudade da fenda fedegosa da fenícia
saudade da baba de moça
vou à festa junina tomar quentão e paquerar umas caipirinhas
vou ao ranário visitar as pererecas
perdi meu patacão
perdi o panamá em paquetá
o cuco da rua augusta anda caduco
observando os biquínis no minhocão
tirando o chulé na rua dos lavapés
pingando colírio no cine íris
lendo a bula na vila dos remédios
embaixo da escada-rolante do metrô ana rosa
paquerando a parteira do pari
chá preto com biscoitos de araruta
sou mais romântico que pedalinho em paquetá
saudade da rua do peixe
saudade da vulva da vó uva
saudade dos guizos falsos da alegria
saudade dos lábios que não beijei
saudade do bicho geográfico
saudade da sorveteria pinguim de casaca
saudade do cine macuco
saudade do parque eletrônico futurama
saudade das fontes murmurantes
fui um ás da dança de salão, agora dou três volteios e as juntas rangem mais que porta de bordel
regando o caule da açucena
cafofando a bufunfa
comprando tubérculos no largo da batata
contando carneirinhas
essas mocinhas na praia de vergonhas mui saradinhas, falta pano nos fundilhos, sobra fogo na ventoinha
fornicam o rei e o vassalo, o castilho e o panicalho
conhece o tadei? Aquele que te carcou atrás da lona do circo orlando orfei
conhece o licurgo? Aquele que te carcou em cordisburgo
conhece o creonte? Aquele que te carcou em novo horizonte
moderninha é a minha pipa que avoa sem carretilha
os cupins estão esfarelando meus móveis
meu panamá está lotado de ácaros
os peixes ladram e a caravela passa
essas batráquias solares maltrapilham meu coração
estrelas estalam nas calhas do constelário
estrelas copulam nas calhas do constelário
os rouxinóis congelaram no varal
os anos passam e o alabastro não arriba como nos tempos de antanho