quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

As coisas da vida


Não te preocupes comigo porque eu sabia que as coisas não podiam durar para sempre. Não foste feita para viver em duas assoalhadas com um escritor que não escreve, para tomar banho de água gelada porque a companhia do gás não fia, para aturar as má-criações do senhorio porque me atrasei na renda. Não te preocupes comigo: compreendo que te vás embora, não armo escândalos, não te peço que fiques. Claro que me custa um bocadinho, ao princípio vou sentir a tua falta, nos primeiros tempos, em chegando as sete horas, ao ouvir os passos no patamar hei-de correr até à porta.
                  É a Tereza
                E afinal não é a Tereza, é o vizinho do lado esquerdo com um saco do supermercado em cada mão, o vizinho a escapar ao meu abraço julgando que eu enlouqueci e eu recuar aflitíssimo
                 Desculpe senhor Vasconcelos tomei-o por outra pessoa
               o vizinho a aconselhar-me com maus modos que deixe de beber e aferrolhar-se em casa com medo que eu apareça para o beijar tratando-o por amor. Mas não te preocupes comigo: daqui a seis meses estou fino, daqui a seis meses já comecei o romance e consegui um empréstimo do editor, daqui a seis meses garanto-te, tenho a certeza que me esqueço de ti. No início estas coisas parecem sempre horríveis e depois à medida que a gente se habitua vamos tendo menos vontade de chorar, vamos recomeçando a interessar-nos por atentados à bomba e divórcios de princesas que são dois tipos de catástrofes que mais nos apaixonam no jornal, deixamos de aborrecer os amigos com telefonemas a desoras e um belo dia
            (é a vida)
            damos por nós a assobiar ao espelho durante a barba da manhã, se alguém nos pergunta ao café
             O que é feito de Tereza?
             temos de fazer um esforço para nos lembramos de qual Tereza
             Qual Tereza?
             e outros espantados
              A tua mulher que Tereza querias que fosse?
             e nós num tonzinho desprendido, nós sinceros
              Ah a Tereza sei lá não a vejo há séculos
             e verificamos sem surpresa que dizer o teu nome já não dói, que não nos recordamos bem da tua cara, que deixaste definitivamente de existir. Portanto não te preocupes comigo: isto passa. Passa a vontade de morrer, passa o desejo de escrever Tereza no pó dos móveis
            ( porque não vou ter ninguém para os limpar)
            e nos vidros embaciados da janela, passa a estupidez de passar os dias estendido no sofá, a olhar o tecto e lembrar-me daquele  passeio à Foz do Arelho, daquele vestido azul que não tornarei a ver, daquele encavalitamento dos incisivos de que eu gostava tanto, do domingo em que queimaste o jantar, das tuas fúrias por eu apertar a pasta de dentes pelo meio e deixar a torneira do lavatório a pingar toda a noite
           Pensas que és rico?
           ou de quando lia o jornal por cima de teu ombro e tu incomodadíssima
           – Não consigo ler o jornal com uma pessoa a espreitar por cima do ombro desculpa
           a atirares com as páginas e a fechares-te no quarto num derradeiro berro
          – Que chatice
  tu que afastavas a perna se eu aproximava a minha, ficavas hirta se eu tentava beijar-te, cessaste de me dar a mão no cinema, se eu te perguntava
      Amas-me?
    ficavas calada ou resmungavas num esforço de alpinista no Himalaia, como se as palavras pesassem toneladas e o oxigênio faltasse
   Se eu não te amasse achas que estava aqui?
   Tinhas relações sem uma palavra, de dedos mortos nas minhas costas como se desejasses
   (imagina o que eu fui pensar, que parvoíce)
   que terminasse depressa, como se desejasses ver-te livre de mim, que se eu me interessava
    Foi bom?
  me respondias
  – Estou cansada dói-me a cabeça não sei
  e te lavavas muito depressa como se eu te tivesse infectado, a chapinhares meia hora no bidê. Eu sabia que isto não podia durar sempre.
Não foste feita para viver em duas assoalhadas com um escritor que não escreve, para tomar banho de água gelada porque a companhia do gás não fia, para aturar as  má-criações do senhorio porque me atrasei na renda. Não te preocupes comigo: compreendo que te vás embora, não armo escândalos, não te peço que fiques, juro que não me zango se esse amigo que estás a falar e que não sei quem é vier ajudar-te a levar as roupas, a levar os teus livros. Não me zango: assim que vocês começarem a descer as escadas ligo à Mariana ou à Paula ou à Raquel, convido-as para sair comigo, recomeço a existência do princípio. Não julguem que vou desfazer-me em lágrimas ou que me suicido. Não vou. Asseguro-te que não vou. Em todo caso, pelo sim, pelo não, deixa ficar os lenços de papel e a embalagem de valium. A gente sempre precisa de alguma coisa que nos faça companhia não é, e detesto limpar o nariz à manga do casaco da mesma forma que a ideia de me atirar pela janela me repugna: ainda podia cair em cima de vocês, lá em baixo no passeio à  espera do taxi, ainda podia cair em cima do teu amigo e partir-lhe um osso ou assim e tu havias de imaginar que eu me sinto agressivo
   que não sinto
   com esse filho da mãe, desculpa, com esse rapaz que deve ser, que tem de ser, que aposto que é uma jóia de pessoa.


(António Lobo Antunes )

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